Cartas
O Caio Fernando Abreu é um escritor que eu leio e me dói. Dói de doer, dói de doído, dói de bonito, dói de saudade. É impossível ler algumas linhas, frases, contos, trechos e não pensar meu deus do céu, que homem é esse? Sensível, intimista, belo. Fico perplexa, releio e, de repente, sinto um “tapa na cara”. Caio novamente te apontando verdades e causando identificações. Você lê qualquer coisa, se identifica e sente uma tremedeira interna porque algo te incomoda, te toca fundo e te deixa boquiaberta.
Cartas reúne uma série de correspondências que Caio escreveu para amigos, familiares, escritores e você lê sem parar, do começo ao fim. Termina e quer reler. E reler. E reler...duas são as minhas preferidas, uma que ele escreve para Hilda Hilst e outra para o Zézim.
Na carta para Hilda Hilst ele fala sobre o encontro que teve com Clarice Lispector: “...Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. (…)”
Na carta ao Zézim ele fala sobre o que é escrever e, mais uma vez, faz referência a Lispector: “Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. (...)Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida. (…) Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud. (…) o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.”
As cartas do Caio aceleram o coração e, por vezes, te rasgam o peito. E doem. Da mesma forma que Lispector doía nele.
O Caio Fernando Abreu é um escritor que eu leio e me dói. Dói de doer, dói de doído, dói de bonito, dói de saudade. É impossível ler algumas linhas, frases, contos, trechos e não pensar meu deus do céu, que homem é esse? Sensível, intimista, belo. Fico perplexa, releio e, de repente, sinto um “tapa na cara”. Caio novamente te apontando verdades e causando identificações. Você lê qualquer coisa, se identifica e sente uma tremedeira interna porque algo te incomoda, te toca fundo e te deixa boquiaberta.
Cartas reúne uma série de correspondências que Caio escreveu para amigos, familiares, escritores e você lê sem parar, do começo ao fim. Termina e quer reler. E reler. E reler...duas são as minhas preferidas, uma que ele escreve para Hilda Hilst e outra para o Zézim.
Na carta para Hilda Hilst ele fala sobre o encontro que teve com Clarice Lispector: “...Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. (…)”
Na carta ao Zézim ele fala sobre o que é escrever e, mais uma vez, faz referência a Lispector: “Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. (...)Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida. (…) Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud. (…) o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.”
As cartas do Caio aceleram o coração e, por vezes, te rasgam o peito. E doem. Da mesma forma que Lispector doía nele.
* Cartas, Caio Fernando Abreu. Aeroplano Editora. 536 páginas. R$ 55