Entrevista com Pedro Juan Gutiérrez

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Pedro Juan Gutiérrez é um escritor de vanguarda, latino, legítimo. Entenda a vírgula: escritor de vanguarda por sua prosa crua, o novo ''realismo sujo'' cubano. E latino por seu estilo de vida, sua aparência e gestos. Na semana em que passou por Brasília, recebeu a reportagem do Jornal do Brasil de camisa com botões abertos no peito, descalço, e pôs-se a falar das mulatas, cariocas ou cubanas.

Autor de Trilogia suja de Havana, Animal Tropical e O Rei de Havana (todos publicados no Brasil pela Cia. das Letras), Gutiérrez mostra nas suas obras o lado pouco falado de Cuba.

Um país miserável, mas com um povo esperançoso e que aproveita a vida como pode.

Seu primeiro livro, Trilogia Suja de Havana, é narrado em primeira pessoa por um ex-jornalista que faz bicos para sobreviver e não para de fazer sexo.

Quase totalmente autobiográfico - não por acaso o nome do personagem principal é Pedro Juan - o autor fala em um ponto das suas motivações para começar a escrever:

''Faz trinta e cinco anos que não convém falar nada de desagradável nem preocupante nos jornais. Tudo tem de estar bem. Uma sociedade-modelo não pode ter crimes nem coisas feias. Mas a verdade é que é preciso saber. Se não tem toda a informação não se pode pensar, nem decidir, nem opinar. A gente se transforma num tonto, capaz de acreditar em qualquer coisa.

Por isso eu estava tão desiludido com o jornalismo e comecei a escrever uns relatos muito crus. Em tempos tão dilacerados não se pode escrever com suavidade''.

- Como foi ser jornalista em Cuba, sem poder falar de vários assuntos?

Era um momento que eu sofria muito. Estou há 26 anos trabalhando com jornalismo. Lutava muito para dizer o que queria, tinha brigas homéricas com minha editora.

Por exemplo, em Cuba falar de suicídio é um tabu, por razões políticas. E o suicídio é a sexta causa de morte em Cuba, eu precisava falar disso. E não se falava!

''Não, ninguém morre aqui, Cuba é o paraíso...'' (risos).

- Queria-se passar a imagem que todos eram felizes...

Isso, que não existem loucos, drogados, prostitutas, é tudo muito bom... Mas o Ministério da Saúde tem um programa magnífico de prevenção de suicídios, e decidi fazer uma matéria com um enfoque científico. Fiz uma reportagem belíssima, que saiu na revista Boêmia, onde trabalhei 10 anos, a primeira que falou de suicídio.

Acho que o jornalista tem que passar da fronteira todos os dias.

- E a situação da imprensa em Cuba? Há mais liberdade?

Desculpe-me, eu não vou responder à perguntas políticas. Foi uma decisão que eu tomei. Me expulsaram do jornalismo e da União dos Jornalistas em 1998, quando saiu a Trilogia Suja. Eu tenho minhas opiniões, mas não as falo em público.

- Mas qual foi a repercussão dos livros na ilha? Como está sua situação em Cuba com as autoridades?

Não tenho problemas de nenhum tipo. Há um indicativo muito bom agora, na Feira do Livro do ano passado, em Havana, publicaram Animal Tropical, uma edição muito pequena. Mas está publicado, e já está catalogado na biblioteca nacional, e isso é muito importante pra mim.

- Como você começou a escrever? O que te motivou?

É difícil organizar a minha biografia de maneira lógica. Antes de ser escritor, era leitor. Com 14 anos lia de tudo: Truman Capote, Júlio Verne e Jean Paul Sartre. Eu não tinha nenhum guia de leitura, aprendia dando cabeçadas na parede. Sou muito cabeça-dura, sempre fui assim.

Com 16 anos, me deparei com um livro de Truman Capote que foi definitivo: Breakfest at Tiffany's. Quando li isso, disse: ''gostaria de escrever assim algum dia''. Não parecia literatura. Ali se contava uma história de uma maneira tão natural, parecia algo meio sem-querer. Isso marcou a minha idéia de ser escritor. Mas não queria a literatura convencional, isso ia tirar a minha criatividade.

- Mesmo com grande dificuldade financeira, você ainda tinha acesso à cultura em Cuba. No Brasil, quem não tem dinheiro não tem acesso a livros ou informação. Cuba é diferente do mundo?

Creio que não. Há gente mais interessada, mas a maioria das pessoas - como em todo o mundo - não se interessa pela literatura e pela cultura, e vivem à margem de tudo. Eles vêem a novela, ou qualquer porcaria que passa na TV, e se contentam com isso. Isso aconteceu sobretudo a partir dos anos 90, quando Cuba entrou numa depressão brutal. Há uma miséria grande, como está na Trilogia. Muitos marginais, bêbados... Os mendigos na rua era um fenômeno que havia sido eliminado. Até os anos 1980, tudo funcionou de uma maneira diferente. Esse crash resulta, é lógico, numa crise política, social, ética, moral. Sim, porque as pessoas precisavam de alguma coisa para comer, não podiam ficar depressivos o dia inteiro ou cometer suicídio. Tinham que fazia alguma coisa. Nem que fosse comer ratos ou se prostituir.

- Mesmo com todas as dificuldades, você mostra no seu livro uma fé muito grande nos cubanos. O que você acha do povo de Cuba?

Os europeus admiram muito o povo cubano. Em outros países, se tivessem a situação econômica de Cuba, as pessoas iriam simplesmente morrer, se suicidar. Mas nós nos mantemos sorrindo. Eu penso que isso se deve muito à mestiçagem. Nós somos meio espanhóis e negros. Foi um processo cruel, mas de seleção. Se aproveitaram os negros mais fortes, as mulheres mais ''parideiras''. Com os negros duros e os espanhóis brigadores. Essa mescla nos favorece. Estamos num país muito bonito. Não é como na Finlândia, que quando chega o inverno, as pessoas choram, entram em depressão. Também, eles só tem três horas de sol! Nós temos luz, praias, mulatas lindas, música! Eu com dois dólares consigo me divertir. Acho que isso nos salva.

- Você vê muitas semelhanças entre nossos povos?

Sim, somos muito parecidos, apesar de a mestiçagem no Brasil ser muito mais complicada. Eu acabo de chegar da Finlândia, e quando cheguei aqui, parecia que estava em Cuba. ''Ai, que alívio'', eu pensei (risos). As mulheres são tão bonitas! Fiquei três dias no Rio de Janeiro, e aproveitava as manhãs para ficar na rua e apreciar as mulheres (risos). As mulatas com a bunda grande... Que felicidade (risos)!

- Em uma parte da Trilogia, você diz que ''paz interior'' é para imbecis.

Sabe o que aconteceu? Esse livro era o primeiro de um ciclo de 5 livros. Quando eu escrevi a Trilogia, estava assim, com muita raiva, muito decepcionado. Eu tinha idéias suicidas, andava depressivo, não tinha dinheiro ou comida. Esse livro é uma grande catarse. E eu escrevia me entregando totalmente. Os outros livros também são bastante autobiográficos - com exceção do Rei de Havana, escrito em terceira pessoa -, inclusive El insaciable hombre araña e Carne de Perro, que já estão sendo traduzidos, e devem ser lançados no Brasil.

Mas voltando, o Pedro Juan da ficção foi evoluindo. Da mesma maneira que, paralelamente, acontecia comigo. Sou mais educado, ele é um pouco mais brutal. Somos duas pessoas que foram caminhando juntos, às vezes se chocando. E assim seguimos. O Pedro Juan dos livros, e o Pedro Juan da vida. A pessoa vai ficando mais velha, vai ficando mais sábia. (pausa) Se bem que nem sempre. Mas comigo é assim.

- Sua opção por escrever em primeira pessoa é algo natural para você, estar expondo sua história?

Este era um livro que não estava premeditado. Eu escrevia algumas coisas para me entreter mesmo. Às vezes escrevia bêbado. Era uma época de muita promiscuidade sexual. Não sei como não me adoeci. Mas eu não estava planejando juntar um livro. Quando vi, depois de três anos, havia escrito 70 contos.

Terminei, e disse: chega! Porque começa a ficar maçante, falar tudo aquilo sobre você mesmo. Entre 94 a 97 - quando escrevi a Trilogia -, vivia numa casa sem móveis, não tinha nem uma bicicleta. Eu continuava trabalhando como jornalista. Mas, como a crise, o meu salário equivalia a US$ 3. Isso como jornalista 5 estrelas, trabalhando na melhor revista do País.

- E você conhece a literatura brasileira? Algo nela te influenciou?

Na literatura brasileira, eu gosto muitíssimo de Clarice Lispector. Comprei todos os livros dela publicados em espanhol. É fascinante. Gosto muito de Rubem Fonseca e Paulo Lins também. Mas creio não ter ponto de contatos nem com a literatura brasileira nem com a hispano-americana.

- Você acredita que faz algo completamente diferente?

Sim, eu penso isso. Faço algo totalmente diferente. O idioma castelhano se presta muito à retórica, ao barroquismo. Escrever muito e dizer pouco. E a minha filosofia é totalmente o contrário. Dizer o máximo que posso, no menor espaço possível.

- Talvez isso venha da sua formação jornalística, não?

É verdade. Trabalhei com notícias, e tinha de falar tudo num espaço curto. Como Hemingway: frases afirmativas e períodos curtos. Não utilizar orações subordinadas, usar muito o ponto final. Pratiquei isso durante anos e anos, e acredito que me afastei muito, por causa disso, da literatura hispano-americana. Em relação ao uso do idioma, ao ponto de vista, ao enfoque. Talvez tenho mais a ver com os narradores norte-americanos. Truman Capote, Hemingway, William Faulkner.

- Tem uma frase do William Faulkner, que diz: ''a melhor ficção é mais real do que o jornalismo''. Você acredita nisso?

Acho que a boa literatura deve ser convincente. Eu utilizo e manipulo a realidade que conheço, me baseando nas circunstâncias. E crio uma nova realidade, a partir da realidade ''real''.

- Seu livro é acessível para qualquer pessoa. Você pensa nisso quando vai escrever?

Não penso em nada disso. Escrever é um ato solitário, um exercício de pensamento. Só você, uma mesa e seus personagens. Não importa o que vão falar depois. Um canadense veio aqui com fotos de mulheres nuas, dizendo que eu era um pornógrafo. Outros jornalistas dizem que o que eu faço são crônicas jornalísticas. Vieram uns antropólogos da Universidade de Chicago falando que eu faço estudos antropológicos.

- Você então odeia rótulos.

Sim. No final eu penso que posso ser tudo isso, e nada disso ao mesmo tempo. No final, o escritor deve contar uma história. Tem que entreter o leitor e ao mesmo tempo fazê-lo pensar, mas com graça.

- O que você pensa sobre as vanguardas literárias latino-americanas?

Na verdade meus ídolos são Cortázar e Kafka. Não são influências, mas me fascinam. Eu não sou um teórico, um ensaísta. Nós utilizamos a realidade sem maquiagem. Vamos às entranhas, às tripas, ao muco da realidade, para podermos fazer as nossas obras. E dessa maneira reunimos a loucura da sociedade, que ela esconde. Não há uma preocupação muito grande com o estilo, pelo contrário.

- E quais são seus planos, agora que é famoso e está tranqüilo?

Estou terminando o ciclo de Havana, que são 5 livros. Há dois diretores que querem fazer filmes com meus contos. Mas fazer filmes é muito custoso. Devo lançar na Espanha um CD com poemas recitados por mim. E começar a escrever um romance e um livro de contos. Mas eu quero sair do personagem Pedro Juan, de Havana. Acho que já deu o que tinha que dar. Acredito que estou mais tranquilo agora. Eu estou pintando muito, e isso me acalma. A pintura, como a literatura, é um jogo. E eu não me levo a sério em nenhuma das duas coisas. Eu sigo sendo o mesmo de quando escrevi o primeiro livro, em 1994.
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(Fonte: Jornal do Brasil. Pedro Burgos. 07/07/2003.)
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