Nunca gostei daquela expressão. Sei que também faço caras e bocas sem me dar conta, mas aquela expressão me deixava desconfortável. Nunca soube ao certo se ele tinha consciência da forma como me olhava quando estava pensativo. O que eu sei é que sentia de forma desagradável o peso daqueles olhos que pareciam me vigiar, julgar e condenar. Cheguei a cogitar uma rápida e passageira tendência neurótica, podia ser o que popularmente chamam de mania de perseguição. Podia, mas não era. No fundo eu sabia que nunca seria.
Eu fico sorrindo cada vez que releio a carta que você me escreveu, ele disse. E, de novo, aquele olhar. Durante minutos tentei enxergar o que tinha por trás daquilo, mas lembrei que minhas tentativas anteriores foram todas inúteis. Nunca te conheci profundamente, eu pensei. Me acostumei a elaborar argumentos e interrogações mentais, de certa forma me acomodei com o desenvolvimento da minha teoria. Ninguém vai desvendar este olhar. Ele sempre foi incompreensível. Nunca entendi bem as suas tiradas, ele é o tipo de pessoa que se esquiva de respostas simples como um sim ou um não. Para ele sempre existem reticências. Eu adoro reticências, mas elas me confundem. Dão um aspecto de continuidade e, em alguns casos, de sedução. Eu sonhei com você... os três pontinhos sugerem... o que você quiser. A interpretação é por conta da casa. E a imaginação por aqui é criativa, meu senhor.
Havia o receio. Medo de que me tocasse e desviasse o olhar. Medo de que não me tocasse e fixasse o olhar. Não sei se o temor tinha alguma lógica, sei que ele existia e só por esse fato me deixava um pouco perturbada. Pensei no motivo do sorriso, lembrei da carta. Há alguns anos entreguei uma carta descrevendo a intensidade do meu sentimento por ele. Sentimentos são controversos, às vezes até meio maquiavélicos. Eles nos mostram uma coisa e são outra. São de uma maneira e, daqui a pouco, trocam o jeito. Acho que são mutantes. Encontrei o rascunho da carta e reli atentamente, achei graça. Devo ter me envergonhado de uma maneira quase infantil ao reler aquelas linhas desnudas, limpas, ingênuas. Quando escrevemos sem a presença de pudores é comum uma ligeira vergonha surgir na hora da releitura. Você coloca tanta intensidade e emoção no papel, tenta transferir para a folha tudo o que o momento quer dizer, tudo o que você sente que vai transbordar e que, geralmente, acaba transbordando. Nem que seja de vergonha.
Gosto da forma como o seu indicador vai contornando as linhas da minha mão, abrindo espaço para todos os seus dedos tirarem os meus para dançar. Assim começava a minha carta. E eu me constrangi ao reencontrar o meu pedaço poético. O amor, por si só, tem uma oculta poesia. As manifestações de amor é que possuem uma poesia aparente. Continuei. Gosto quando a ponta do seu nariz invade as minhas sardas e me apaixonei no instante em que senti você esfregar a barba sensualmente na minha orelha, como se fosse revelar algum segredo silencioso. Ali eu descrevia todos os motivos do meu encanto. Lembro que ele gostava de ficar me observando enquanto eu escrevia. Eu ali, concentrada. Ele ali, procurando uma mecha do meu cabelo para começar a enrolar com o dedo. Ele sempre gostou de enrolar o meu cabelo. Hoje, ao relembrar essa mania, vejo que aquilo me acalmava, me trazia uma estranha paz. Eu me sentia segura com o fato de saber que ele estava ali. Ele e aquele gesto incansável e repetitivo de enrolar mechas dos meus fios de cabelo. Foi então que procurei a carta dele. Estava dentro de uma caixa, a nossa caixa de recordações. Ali tinham fotos, cartas, bilhetes, pétalas de flores secas e aquele livro. Um livro que ele me deu, todo marcado com os nossos trechos preferidos, o livro que ele lia para mim. E então eu me senti acolhida por todas aquelas lembranças boas, aquele tempo em que éramos tão próximos, tão nossos. Ele sempre teve um ar de mistério que eu nunca descobri, por mais que me esforçasse. Se protegia através de sorrisos, se escondia por baixo de uma ironia simpática. Acho que ele nunca quis se conhecer, de repente foi essa a causa do nosso desencontro. Eu queria indicar os caminhos para ele se encontrar, ele queria que nós dois nos perdêssemos e apenas aproveitássemos o sentimento que nos envolvia. Lembrando parece tão fácil e tão distante. Eu sentia tudo complicado e tão perto. Talvez essa proximidade me causasse estranheza. Eu estava próxima de mim, ele fazia com que eu me enxergasse. Quis fazer o mesmo por ele. Ele não quis. Então reli a última carta que ele me escreveu.
Gosto da forma como você tira o scarpin e mexe os dedinhos dos pés, como se eles fossem uma pessoa correndo pela praia de braços abertos para sentir o vento. Gosto da maneira como você pega uma parte do cabelo e coloca no nariz, para sentir a mistura do cheiro do shampoo com o seu perfume. Gosto de encostar a cabeça no seu peito e sentir a sua clavícula massageando as minhas têmporas. Gosto da forma como você contrai a testa quando está tentando achar uma palavra que se escondeu. Gosto do jeito delicado que você coça o nariz com a pontinha das unhas vermelhas. Gosto da maneira que você olha para baixo, sorri, ruboriza e mexe na medalhinha do pescoço quando se sente envergonhada. Gosto quando você diz que tudo o que eu preciso é você. É. E foi. Até agora. Mas hoje eu preciso é de mim.
E ele foi embora. Hoje eu estava terminando um artigo e a secretária avisou que tem visita na sala, minha senhora. Um pouco contrariada levantei com a minha xícara de chá meio gelado, um cigarro quase no fim e fui até a sala. Lá estava ele. Mais velho, mais bonito, mais atraente. Disfarcei o choque, larguei a xícara em cima da primeira mesa que enxerguei, apaguei o cigarro, tentei arrumar a saia, forcei as pernas a pararem de tremer. Boa tarde. Quanto tempo. Você está ótima. Obrigada, você também. Estava passando por aqui, vim entregar o convite para o lançamento do meu livro. Obrigada, parabéns. Você vai? Talvez. Eu fico sorrindo cada vez que releio a carta que você me escreveu. Pausa. Aquele olhar. Filme passando na cabeça.
Nunca te conheci profundamente, eu pensei. E ele foi embora. De novo.