Ele estava na Rua 3147, em uma cidade pequena pertinho da capital. Há algum tempo se escondia da própria vida, tudo o que possuía era um notebook e alguns pedaços dos dias. Na maior parte do tempo dormia, talvez para não pensar, quem sabe uma tentativa de se esquivar de ter uma conversa adulta com a Verdade. O quarto era pequeno, sempre embalado por Round Midnight, a televisão tinha uma imagem péssima e ele nem se importava, pois Chet Baker lhe fazia companhia. O armário de madeira clara estava sendo destruído pela família de cupins, que era gigantesca.
Falava pausadamente, mas conversava mais consigo mesmo do que com as poucas pessoas que ainda tinha contato. Uma noite estava voltando do bar em que tomava Martini diariamente e encontrou um gato magro, de pêlos pretos e cara de me leva e ele passou reto e deu meia volta e sentiu pena e levou. O Me Leva passou a ocupar um pedaço da cama de colchão meio gasto e todos os dias os lençóis ficavam com pequenas bolinhas de pêlo, que ele pacientemente sacudia pela janela, como se fosse uma toalha de mesa cheia de migalhas de pão. Ele estava cansado de perguntas. Um mosquito insistia em tirar-lhe a concentração, fazendo um zumbido chato e dançando estranhamente na volta da cortina amarelada pelo excesso de tempo e do cigarro. Tinha a voz rouca e dizia que o fumo era a sua terapia, o cigarro sentava com ele para tomar café da manhã e ali permanecia até ser convidado a sair pela porta vermelha. Afasta os maus espíritos, ele repetia para si mesmo, afasta os maus espíritos. O vermelho mantém o que é ruim lá longe, ele pensava.
No horário em que todos dormiam ele bebia. Em mais uma das muitas noites comuns ele resolveu pensar nas coisas que ficaram em São Paulo.
- Você já se sentiu sozinho?
Essa pergunta não saía de sua cabeça. Já, já. Me Leva ronronava e fazia cara de quero carinho, mas ele estava enfiado em uma camisa de força imaginária, não podia se mover, o pensamento lhe cutucava o corpo inteiro. Todo mundo já se sentiu sozinho um dia. Vez ou outra alguns se sentem. Sozinho, com gente. Sozinho, sem ninguém. Sozinho, palavra forte. Solidão, impacto.
- A solidão te machuca?
Não, não pensa nisso. Se sentir só já é o suficiente, então não vamos pensar em dor. Ele sempre fugiu de suas dores, era o meio mais fácil de aceitar os seus erros. A dor entrava pelos buracos e ele arrumava tudo e saía sem olhar para trás. Adeus. Vamos mudar de cidade. Chet Baker, notebook, uma foto colada com durex, uns trocados, o travesseiro de penas de ganso que ele não vivia sem, só. E agora o Me Leva. O jeito dele de encarar as angústias era ficar trocando de lugar. Primeiro, ele começou trocando os móveis. Sofás, sala de jantar, estante, cama. Depois passou a contratar decoradores, arquitetos, fazia projetos. Em um dia tudo era clean, no outro cheio de flores, no próximo preto e branco. Nem ele suportava a inconstância de seus gostos. Passou a mudar de amigos. Não conseguia ficar cúmplice e íntimo de alguém por mais de seis meses. Colegas de escola ele não tinha. Não atendia ligações, tampouco retornava quando era procurado. Há poucos meses, Jorge - que foi o primeiro colocado do campeonato de duplas de bolinhas de gude junto com ele - o procurou, a fim de relembrar os velhos tempos. Deixou recado. Ele ouviu o recado. Ele até sorriu com e para o recado. Ele apagou o recado. E não retornou. De uns tempos para cá ele decidiu: cidade nova. E assim ele ia de cidade em cidade. Um nômade. Um andarilho.
- Você já se sentiu sozinho?
A pergunta sacudia sua garganta, por mais que ele não quisesse pensar precisava acertar os seus desajustes emocionais. Ele tinha um nome importante, seu closet era recheado de ternos italianos, tinha motorista, carro blindado, esposa que usava anéis com diamantes. Quem via de fora pensava que ele tinha tudo. Viajava o mundo, fazia negócios, ganhava dinheiro. E amava Laura. Mas amava, mais ainda, o dinheiro. Presenteava a esposa com as mais belas jóias, pouco ficava em casa, pouca atenção dava para aquela que, supostamente, era a mulher de sua vida. A que seria mãe de seus filhos. A que ele jurou na frente do padre e das testemunhas que estaria junto na alegria e na tristeza. Era até que a morte os separasse. A morte não veio, nem a alegria, nem a tristeza. Ele não tinha nada. Foi tudo um sonho, entende?
- Você já se sentiu sozinho?
"Eu não quis aceitar e me apeguei ao que possuía. E o que eu possuía era a minha imaginação. Vivi com ela até o dia em que Laura disse que não dava mais. Não dá mais, vou embora. Vai embora? Vou. Então vai. Então vou. Então foi. E voltou, mulheres não deixam nada preso no peito. Ela voltou e disse tudo que eu precisava ouvir. Acabou? Vou embora. Vai embora? Vou. Então vai. Então vou. Então fui."
- Você já se sentiu sozinho?
- Já, não mais. Me Leva!!!
Falava pausadamente, mas conversava mais consigo mesmo do que com as poucas pessoas que ainda tinha contato. Uma noite estava voltando do bar em que tomava Martini diariamente e encontrou um gato magro, de pêlos pretos e cara de me leva e ele passou reto e deu meia volta e sentiu pena e levou. O Me Leva passou a ocupar um pedaço da cama de colchão meio gasto e todos os dias os lençóis ficavam com pequenas bolinhas de pêlo, que ele pacientemente sacudia pela janela, como se fosse uma toalha de mesa cheia de migalhas de pão. Ele estava cansado de perguntas. Um mosquito insistia em tirar-lhe a concentração, fazendo um zumbido chato e dançando estranhamente na volta da cortina amarelada pelo excesso de tempo e do cigarro. Tinha a voz rouca e dizia que o fumo era a sua terapia, o cigarro sentava com ele para tomar café da manhã e ali permanecia até ser convidado a sair pela porta vermelha. Afasta os maus espíritos, ele repetia para si mesmo, afasta os maus espíritos. O vermelho mantém o que é ruim lá longe, ele pensava.
No horário em que todos dormiam ele bebia. Em mais uma das muitas noites comuns ele resolveu pensar nas coisas que ficaram em São Paulo.
- Você já se sentiu sozinho?
Essa pergunta não saía de sua cabeça. Já, já. Me Leva ronronava e fazia cara de quero carinho, mas ele estava enfiado em uma camisa de força imaginária, não podia se mover, o pensamento lhe cutucava o corpo inteiro. Todo mundo já se sentiu sozinho um dia. Vez ou outra alguns se sentem. Sozinho, com gente. Sozinho, sem ninguém. Sozinho, palavra forte. Solidão, impacto.
- A solidão te machuca?
Não, não pensa nisso. Se sentir só já é o suficiente, então não vamos pensar em dor. Ele sempre fugiu de suas dores, era o meio mais fácil de aceitar os seus erros. A dor entrava pelos buracos e ele arrumava tudo e saía sem olhar para trás. Adeus. Vamos mudar de cidade. Chet Baker, notebook, uma foto colada com durex, uns trocados, o travesseiro de penas de ganso que ele não vivia sem, só. E agora o Me Leva. O jeito dele de encarar as angústias era ficar trocando de lugar. Primeiro, ele começou trocando os móveis. Sofás, sala de jantar, estante, cama. Depois passou a contratar decoradores, arquitetos, fazia projetos. Em um dia tudo era clean, no outro cheio de flores, no próximo preto e branco. Nem ele suportava a inconstância de seus gostos. Passou a mudar de amigos. Não conseguia ficar cúmplice e íntimo de alguém por mais de seis meses. Colegas de escola ele não tinha. Não atendia ligações, tampouco retornava quando era procurado. Há poucos meses, Jorge - que foi o primeiro colocado do campeonato de duplas de bolinhas de gude junto com ele - o procurou, a fim de relembrar os velhos tempos. Deixou recado. Ele ouviu o recado. Ele até sorriu com e para o recado. Ele apagou o recado. E não retornou. De uns tempos para cá ele decidiu: cidade nova. E assim ele ia de cidade em cidade. Um nômade. Um andarilho.
- Você já se sentiu sozinho?
A pergunta sacudia sua garganta, por mais que ele não quisesse pensar precisava acertar os seus desajustes emocionais. Ele tinha um nome importante, seu closet era recheado de ternos italianos, tinha motorista, carro blindado, esposa que usava anéis com diamantes. Quem via de fora pensava que ele tinha tudo. Viajava o mundo, fazia negócios, ganhava dinheiro. E amava Laura. Mas amava, mais ainda, o dinheiro. Presenteava a esposa com as mais belas jóias, pouco ficava em casa, pouca atenção dava para aquela que, supostamente, era a mulher de sua vida. A que seria mãe de seus filhos. A que ele jurou na frente do padre e das testemunhas que estaria junto na alegria e na tristeza. Era até que a morte os separasse. A morte não veio, nem a alegria, nem a tristeza. Ele não tinha nada. Foi tudo um sonho, entende?
- Você já se sentiu sozinho?
"Eu não quis aceitar e me apeguei ao que possuía. E o que eu possuía era a minha imaginação. Vivi com ela até o dia em que Laura disse que não dava mais. Não dá mais, vou embora. Vai embora? Vou. Então vai. Então vou. Então foi. E voltou, mulheres não deixam nada preso no peito. Ela voltou e disse tudo que eu precisava ouvir. Acabou? Vou embora. Vai embora? Vou. Então vai. Então vou. Então fui."
- Você já se sentiu sozinho?
- Já, não mais. Me Leva!!!