Perguntaram o que eu queria da minha vida. Olha, não sei, quero muitas coisas. Acordada, dormindo, sonhando, perambulando pela casa com frases perdidas na cabeça, cantarolando qualquer música enquanto tiro o pó da mesa da televisão. Quero, troco, destroco. Assim bem certo, na lata, na bucha, uma frase, uma nota, não sei. Eu quero ser feliz seria uma frase clichê demais. E eu acho que felicidade constante não existe. A gente é feliz e infeliz todos os dias, com notícias, experiências, humores, descobertas, encontros, pensamentos entrecortados. E eu não gosto muito de clichês, apesar de vezenquando ser a clichezona da paróquia. Mas agora, assim, desprevenida, cara a cara com a pergunta inimiga eu não sei dizer direito o que eu quero da minha vida, mesmo porque a vida não é roteiro, nem filme, embora de vez em quando pareça. E a minha, acredite, volta e meia parece um filme bem trash.
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Se você perguntar o que eu não quero da (e pra) minha vida eu sei dizer. Não quero beijo pela metade, aperto de mão mole, abraço com tapinha nas costas, abacate, avião caindo, decisões a jato, gente podre. Não quero lixo no chão, coração apertado, criança pedindo esmola na rua, aquecimento global, desperdício de água, assalto na esquina, bandido circulando pelo bairro, maionese vencida, cravos na testa, chá de funcho. Não quero gente que não sabe ser inteira, pedaço de desilusão, desapontamentos com amigos, infidelidade, auto-traição-porque-a-gente-se-trai-sim-senhora-e-sim-senhor. Não quero ter que levantar pra fazer xixi quando está 4 graus e eu estou embaixo das cobertas, não quero que a calça fique apertada, não quero bater o dedinho na escrivaninha, não quero esbarrar em gente suada. Não quero gritões ao meu lado, detesto berros, a gente pode falar num tom de voz normal que tá tudo bem. Gostaria de dizer que eu não tenho um tom de voz normal, meu tom é alto, tá tudo bem? Não quero meia furada, não quero calcinha com elástico frouxo, não quero lagartixas se arrastando pelas minhas paredes, não quero que me liguem na hora da novela, não quero que ele espiche o pescoço se a Flávia Alessandra fizer topless em plena Avenida Nilo Peçanha peçanhando tudo por aí. Não quero domingos e despertadores, não quero que a Lei Tudo Pra Baixo comece a agir porque eu gosto de tudo pra cima. Não quero mais ter dor de amor, nem de cotovelo e nem de dente.
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Não quero gente chata com papo chato em ambiente chato nas horas chatas. Não quero mais receber correntes, simpatias, mandingas, preces e piadas de loira no meu e-mail. Não quero mais atender o celular. Não quero mais procurar emprego. Não quero ser sempre a infantilóide-sentimentalóide-choronalóide-debilóide-mongolóide-mimalóide-dengosalóide da relação, em algumas horas é preciso ser a mulher-madura-e-consciente. Não quero passar a vida tentando descobrir a fórmula da mulher-madura-e-consciente. Não quero mais ler revistas femininas, elas só mostram o quanto eu sou diferente das modelos - nem tanto, eu também tenho dois olhos, um nariz, uma boca, dois braços, duas pernas. Duas pernas com duas coxas. Grossas. Tudo bem, eu também tenho peitos e bunda. Imensos. Nem só de alface vive a mulher. Não quero mais viver de alface e mesmo assim não adiantar nada. Não quero mais comer granola, frutinha saudável e coisas verdes.
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Quero me jogar nos braços dos carboidratos, dar um mergulho numa piscina cheia de vinho, cerveja, clericot, vodka, champagne, tudo junto e reunido e misturado e ter uma overdose. Mas isso não é droga, é trago. Então eu quero mergulhar de boca aberta e entrar em coma alcoólico e morrer feliz. E bêbada. O assunto não é o que eu quero e sim o que eu não quero. Não quero mais ficar trocando de assunto a toda hora e confundir a cabeça de quem me lê. Não quero mais mentir pra minha avó, ela me dá coisas horríveis de Natal. Não quero mais que a 7Belo grude no meu dente lá de trás - tem que colocar o dedo pra tirar e isso é nojento, quando não consigo me dá uma agonia imensa e fico tentando tirar com a língua. Quase me dou um nó lingual, é péssimo. Não quero mais trocar de assunto, não quero e não quero e não quero. Não quero mais que roxos apareçam pelo meu corpo sem dizer da onde vieram. Não quero mais ser acordada por passarinhos, uhu-viva-a-natureza só depois das oito da manhã, seres cantantes! Não acho nada lindo e poético ser acordada às cinco e meia por bichos cantando na janela. Não quero mais que o jornaleiro erre a mira e atire a Zero Hora dentro do laguinho que fica ali na frente quando chove. Não quero mais ser passada pra trás e me enganar com amigos, já passei da idade (algum dia passa?).
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Não quero mais esquecer coisas que eu devo lembrar. Não quero mais lembrar coisas que já deviam ter sido esquecidas. Não quero mais sentir solidão a não ser quando eu quero e preciso. Não quero mais estragar o salto nos paralelepípedos. Não quero mais ao meu lado gente que não sabe o que não quer. Não quero mais gente que não escreve, não ama, não se confunde, não tem medo e não bebe água. O medo é importante na vida, todo mundo deveria ter um (uns!!), eu recomendo sem moderação. Não quero quem não escreve cartas, o Mundo do E-mail faz com que as pessoas esqueçam como é bonito ver a letra, sentir o cheiro do papel, enxergar erros e pressa e calor e indecisão e solidariedade e entendimento e cansaço e tremores e alegria e saudade e vontade e tempo e romantismo e tudo o que dá pra sentir nas cartas através de emoções que são colocadas num papel engraçadinho. Não quero mais gente que usa diminutivos. Boazinha, legalzinha, queridinha, mimosinha. Não quero que me chamem de querida. Uma coisa é dizer tal pessoa é uma querida, outra bem diferente é falar oi querida, tudo bom?, pior ainda se vier de vendedora. Não quero mais vendedoras falsas. Não quero mais pessoas rancorosas, com humor duvidoso, caráter duvidoso, sorriso duvidoso, abraço duvidoso. Não gosto de quem não abraça. Não gosto de quem não beija de verdade, beijo-só-pra-constar-e-fazer-barulhinho eu dispenso. Não gosto de quem não olha no olho. Não gosto de quem ri discreto. Não gosto de quem não sorri com os olhos, nem de quem não sabe sorrir. Não gosto de quem não gosta de cachorro e criança e velhinho.
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Posso não saber direito o que eu quero mas sei bem o que acho desnecessário. Já é um bom começo. O resto eu conto depois, quando descobrir.