Mal acabado

By | 16:27

(as aparências quase sempre nos enganam)
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Hoje vou contar uma história e, como não estou muito criativa, começarei com o clássico era-uma-vez. Era uma vez uma amiga minha. Não, não pense que a história me pertence, sei que as pessoas têm a mania de colocar as próprias histórias nas costas dos outros por vergonha, falta de coragem ou sabe-se lá o motivo. É o famoso aconteceu-com-uma-amiga-minha, leia-se: aconteceu com você, mas você vai ficar bem quietinha e esconder o jogo. Aqui não jogamos, pois não sabemos. Segue o enredo então: era uma vez uma amiga minha. Ponto, nova linha, parágrafo.
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Minha amiga era bonita, articulada, charmosa, com inúmeros talentos. Uma criatura bem quista, observadora, dona de um senso crítico poderoso, tinha bom gosto, classe e postura. Ponto. Outra frase. A minha amiga namorava um moço igualmente bonito, articulado, charmoso, com inúmeros talentos. Eles formavam um casal e tanto. Sempre risonhos, simpáticos, conversavam quando estavam sozinhos ou na multidão. Cá pra nós: não existe nada mais deprimente do que um casal que sai pra almoçar e não trocam sequer uma palavra. Acho triste ver os casais em restaurantes, bares e cinemas quietos, cada um submerso nos seus próprios pensamentos, cada um envolvido na sua própria solidão. É preciso querer a companhia do outro, ter admiração, assunto, novidades internas e externas. O silêncio é igualmente bem-vindo, mas um silêncio desejado, permitido, amigo; não um silêncio que sentou ali por falta de lugar, por não ter outra opção. Fecha o parêntese, volta pra amiga. Ela tinha um problema: era ciumenta. Não a ciumenta-saudável-aceitável-que-é-até-meiga. Ela era a ciumenta doida-varrida-que-inventava-coisas-e-fazia-maluquices-de-terceiro-e-quarto-graus.
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O coitado sofria nas mãos dela, pois ela ainda não havia se libertado do fantasma da ex. Ex, como sabemos, é uma demônia com um tridente na mão, prestes a espetar a sua bunda. No caso deles, o moço nem lembrava mais da existência da vivente na face da terra, já ela fazia questão de repetir o nome da outra a todo instante. Pra você que não sabe, aqui vai uma dica: muitos homens nem vêem outras mulheres, nós é que burramente chamamos a atenção dos mesmos. Se nós não os deixamos esquecer é óbvio que eles nunca esquecerão. Ela tinha outro problema: era levemente interesseira. Traduzindo: gostava dos que apareciam nas colunas sociais, gostava de aparecer, gostava de estar no meio dos diamantes. Guarde bem a palavra: diamantes.
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Você já deve ter ouvido que os diamantes são os melhores amigos das mulheres. Mas tem mulher que leva isso ao pé da letra. Explico. Gosto, uso, acho bonito e penso que a vida é muito mais que um punhado de diamantes ou que brincos de diamantes ou que um anel de diamantes ou que uma pulseira de diamantes ou que um colar de diamantes. Ou com diamantes puros, sem acompanhamentos, gelo e limão. Um anel lotado de diamantes não é prova de amor, nem prova de coisa alguma. Certas mulheres não pensam assim...explico (de novo) nas linhas que seguem.
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Minha amiga, em uma crise violenta de ciúmes, disse para o bem intencionado moço que queria uma prova de amor. Alô, alô, amor não precisa de provas. Não consigo contar histórias era-uma-vez sem fazer as minhas intervenções, falha nossa. Quero uma prova de amor, ela disse. O rapaz, num ato de intenso romantismo, perguntou: qual o número do seu dedo? Ela imediatamente respondeu: quinze. E mostrou o dedo, aquele dedo que os noivos usam aliança. Ela, com a cabeça viajante, deve ter achado que ele iria propor casamento.
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Cena do capítulo: noite, uma leve brisa, moço nervoso. Meu amor, me empresta o seu dedo. Ela, no auge da empolgação, estica a mão mostrando o dedo, imaginando um bambolê cheio de diamantes envolvendo a pele suavemente branca. Ele, romântico e sensível, coloca no dedo dela um anel de compromisso, que não era de ouro amarelo, nem ouro branco, nem prata, nem nada. Um anel de compromisso com o my love gravado dentro. Minha amiga, cheia de desprezo e decepção, olha pra ele e diz: como assim? Ele, sem entender, estica o dedo e fala: agora é a sua vez (e esperou que ela colocasse o anel no dedo dele). Aperta no pause que explico o final da trama.
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Gestos românticos são gestos pequenos e valiosos e bons e que nos deixam sorrindo e vão dando aquele friozinho que vira quentinho que vira arrepio e que, no fundo, são reações corporais, efeitos que o amor causa quando vemos o objeto do nosso amor - o ser amado - querendo nos agradar, seja com surpresa, seja com um bilhete, seja com um bombom. Pra mim o que vale é a coisa pequena, por isso eu disse que dispenso diamantes. Conheço namorados, noivos e maridos que compensam a falta de atenção, carinho e amor com presentes, viagens, jóias. No fundo, o que fica é um vazio irreversível.
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O pior foi a minha amiga contar que achou um desaforo ele chegar com "aquele parzinho de latão mal acabado", ele não entendeu que ela "havia pedido uma prova de amor". Prova de amor é dar um diamante?, perguntei. Ela ficou irritada e disse "ele perguntou o número do meu dedo e eu imaginei que ele fosse perceber, afinal saímos outro dia e falei que um anel que estava na vitrine era lindo". Fiquei horrorizada. Falei pra ela que eu tinha achado a atitude dele uma graça, muito bonito, original e ela me olhou incrédula e me chamou de louca.
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Que parte eu perdi da vida? Gosto de demonstrações honestas. Esses dias abri um caderno, eu estava muito apressada e lá pelas tantas achei uma folha com um bilhete do meu namorado. Foi a coisa mais linda do mundo, fiquei sorrindo que nem uma criança o resto da manhã. Outro dia abri a porta de cima do guarda-roupa e achei um post it com outro recadinho dele, lindo, lindo. Gosto disso, dessas coisinhas do dia-a-dia. Sim, eu também gosto de diamantes. Mas quer saber? Gosto muito, muito mais de gente. Gente que sente. E gente que dá um parzinho de latão mal acabado, mas que vem do coração.
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