Existe uma frase célebre do Sartre que diz, assim, bem simples, na lata que "O inferno são os outros". Vou agora dizer uma frase minha que talvez nunca seja reconhecida, lembrada, dita em algum canto do mundo com aquele gosto de satisfação: o inferno sou eu. Não se assuste, apenas compartilhe do meu pensamento que será desenvolvido e melhor elaborado nos próximos parágrafos.
Não dá pra jogar nas costas do outro (que em geral é muito bem escolhido pelos nossos dedos tortos e calejados) uma culpa que é nossa. Culpa, uma palavra forte e de impacto. Hoje estou impactante, perdoem. É tão comum procurarmos um culpado para os nossos deslizes, reações, explosões, emoções. Fiquei brava e mandei a atendente da loja tal tomar no c*, afinal, ela foi muito medonha ao responder a informação que pedi. O cara se atravessou na minha frente no meio da rua e fiz um gesto obsceno, que desgraçado. Desliguei o telefone na cara da minha irmã, quem manda ela ficar nervosinha quando ouve o que não quer? Queimei toda a coleção de Playboy daquele infeliz, não é pra ficar vendo revista de mulher pelada, que desaforo. Pára tudo, peraí.
Não podemos justificar os nossos atos baseados no ato de alguém. Ele fez isso, fiz aquilo. Ela fez aquilo outro, mereceu o que fiz por isso. Não é assim que o mundo funciona: fez, fiz, fará, farei, faraó. Sei que tudo tem uma ação e uma reação, que todo o ato implica uma conseqüência, sei, eu sei, já disse que sei, mas me ouve, me ouçam: isso não leva a nada, lugar algum. Ninguém tem culpa pelo dia horrível que estamos tendo, por nossas frustrações, pelos nossos planos recortados, pelos sonhos que viraram pó, por todos os projetos que nunca irão sair da gaveta. Entenda, é assim. Entenda, tome a responsabilidade para si.
O inferno é conviver, aceitar, reconhecer e ser sincera comigo mesma. É dizer que sim, eu erro, vacilo, piso na bola, distribuo mágoas sem querer, troco as ferraduras, dou patadas, falo o que não devo, falo sem pensar, faço cagada, me enrolo, me embolo, me perco, digo o que não queria, tenho ataques de sinceridade e de agressividade e de verdade. Sim, eu tenho ataques de verdade, resolvo falar todas as verdades do mundo, doa a quem doer, mesmo que doa em mim, em todas as partes do meu corpo, porque me dói bastante falar verdades e inclusive me dói muito quando chego e digo olha, eu quero muito conversar com você, senta aí que vou te enumerar umas verdadezinhas bem salafrárias e ordinárias como você vem sendo nos últimos dias, queridinha, e me dói muito, muito quando essa pessoa, a queridinha, sou eu. Porque eu me digo verdades a todo instante e às vezes nem me ouço, não quero me ouvir, coloco algodão nos ouvidos, vendo os olhos, coloco prendedor de roupa no nariz, não quero ver, escutar e nem sentir o cheiro das verdades. Então elas me perseguem, sobrevoam o meu baú de informações, todas as minhas memórias, lembranças, reações, recordações. É um inferno conviver com isso, com toda essa carga verdadeira e que te sacode e diz que você tem que parar de arranjar desculpas para si e para os outros e que é preciso encarar a vida e as pessoas e as coisas todas como elas são, mesmo que você não saiba e não entenda os porquês, afinal, a gente nunca sabe como.
O outro não pode levar as minhas malas, a minha bagagem, a minha vergonha, mágoa, coragem, covardia, esperança e a fé em alguma coisa, porque a gente tem que ter alguma fé, alguma esperança, alguma coisa que faça peso dentro da mala e diga que vale a pena abrir os olhos, a janela, a casa, o coração e que vale a pena assumir as nossas culpas e agarrar as nossas verdades e as verdades dos outros bem forte, muito forte, com os dois braços e finalmente abrir a alma, todas as cortinas que tentam proteger da luz, porque a luz tem que entrar, aparecer, iluminar, a função dela é essa mesmo e então, leve e com a nota fiscal da liberdade em mãos, assumindo o que ela traz de bom e de ruim é preciso dizer com todas as letras e o sorriso desarmado no rosto que não, o inferno não são os outros, o inferno é você.