Lavar louça é que nem andar de bicicleta, pois você nunca esquece. Qualquer pessoa no mundo com o mínimo de coordenação sabe lavar louça, não requer muito conhecimento, pois é só pegar a esponja, o detergente, o prato e tchá-tchá-tchá, liga a torneira e chuá-chuá-chuá. Pronto, tá limpo. Andar de bicicleta não é bem assim, leva tempo. Primeiro você anda com rodinhas, ganha confiança, segurança, andança e de vez em quando até lambança, pois pode cair e se esborrachar inteira. Depois vem a parte boa, o equilíbrio, a sensação de liberdade. Se andar na beira da praia o cheiro de liberdade aumenta - e de vez em quando a sua força também, pois às vezes o vento está de mal com a gente. Beijar na boca é que nem andar de bicicleta, pois é inesquecível. Qualquer pessoa no mundo que tenha língua sabe beijar na boca. Olha aí a sua cara duvidando de mim! Sei que você está lembrando daquele um do final de semana, aquele que beijava de um modo estranho, enfiava a língua e girava-girava-zum-zum-que-nem-enceradeira-fora-de-órbita. E você está recordando aquela uma que colocava só a pontinha da língua na hora do beijo. A questão aqui é o saber beijar e não se os fofonildos beijam bem. Beijar bem é outra história, mas lembre sempre que o beijo para ser bom tem que haver uma sintonia de olfato e lingual. O cheiro diz tudo, diz muito, muito mais do que você supõe. Beijo ruim ninguém esquece, beijo bom também. E andar de bicicleta?
Você deve ter percebido que estou insistindo na bicicleta. Sabe por quê? Não, não é pelo benefício que traz para a saúde. E traz mesmo, viu? Faz bem para o coração, a alma, o espírito, te livra do sedentarismo e deixa a coxa bem dura, além dos glúteos e das panturrilhas firmes. Que belezura! Hoje vou um pouco além: bicicleta é sinônimo de equilíbrio. Acho graça das frases feitas que dizem blá-blá-blá-é-que-nem-andar-de-bicicleta. Não acho. Eu entendo o que existe por trás das frases feitas, é para sugerir que determinada situação/coisa/fato/evento não tem como esquecer. Mas tem, pode acreditar. Tudo é esquecível, a nossa mente é repleta de curvas e estradas de terra que levantam poeira e essa poeira nos cega e nos dá um gosto péssimo na boca.
O que você busca na sua vida? Um apartamento espaçoso o suficiente para ter cachorros e uma estante enorme para abrigar e proteger os seus livros. O que mais? Bons amigos, aqueles de fé que não desligam o telefone na sua cara quando você resolve ter uma crise histérica às três e quarenta e sete da manhã. O que mais? Menos trabalho, mais férias, menos gente de cara amarrada, mais educação e gentileza nas ruas, menos isso, mais daquilo e, por favor, um alguém que faça o seu coração sossegar e ter um colinho para descansar no fim do dia cheio no escritório. Digamos que você já tenha tudo isso, hum? Você quer o quê? Um nariz mais bonito, um cabelo mais comprido, um aumento de salário, um tudo sempre maior e exagerado. Hoje em dia ninguém se contenta com pouco. Não falo de ter visão limitada e ser acomodado, falo do simples, insisto no simples, ele importa tanto!
As pessoas atualmente só querem, querem, querem. E o que elas fazem por trás de tudo isso? Umas se empenham, outras se esforçam ao extremo e algumas ficam esperando o tudo tudo tudo aparecer no meio da sala. Plim, materialização dos sonhos. Você sonha com uma casa nova? Plim, está aí a casa. Você sonha com um cara boa pinta? Plim, aproveite, a safra é 1975, um bom ano. Parece que o principal é o trio amor-trabalho-lar. É claro que existem outras coisas, tem a saúde, então você vai vez ou outra ao médico, faz exames, vê que tudo está bem e relaxa, segue se exercitando, não come tanta carne vermelha, usa filtro solar todos os dias, passa todos os cremes que a dermatologista indicou, aparece para visitar o dentista de seis em seis meses, bebe só aos finais de semana e tá tudo bem, obrigada. É claro que existe a família. Você visita a sua mãe todos os domingos, almoça com o seu pai aos sábados e dá um pulo na casa da sua avó às terças-feiras. Com os amigos você mantém contato durante a semana, via e-mail, telefone e o que mais estiver dando sopa. Você se encontram para um happy hour e aos finais de semana sempre tem aquela reuniãozinha de costume. Mas o trio que mais tem peso na sua vida é amor-trabalho-lar.
Você ama a sua casa, hoje ela está exatamente do jeito que você quer, a sua cara, tem o seu toque, é o melhor lugar do mundo. O seu trabalho de vez em quando é genioso, tem vontade própria, mas nada que um bom papo e um abraço não resolvam o problema, afinal, ele é bem seu amigo. O seu amor é o amor da sua vida, lógico que tem defeitos, mas todo mundo tem, fazer o quê? O seu trio está completo, quase perfeito, você dorme e acorda com a pessoa que você escolheu para dividir a vida, depois vai para o trabalho querendo ir para o trabalho (observe que isso tem um peso grande: tem gente que levanta já reclamando, pois odeia o que faz) e no final do dia chega em casa adorando olhar para o chão, as paredes, a decoração. Que vida feliz. Você dorme bem, respira bem, vive bem e nada deveria te incomodar. Mas incomoda.
Nós somos seres humanos, isso faz toda a diferença. Buscamos tudo, queremos o exagero, seja ele de sentimentos ou de coisas. Ainda prefiro os sentimentos, prefiro deixar o lado materialista fora da jogada. É claro que determinados confortos são fundamentais para vivermos bem e com tranqüilidade, mas detesto gente que só pensa em carrão, casarão, dinheirão. Menos, por favor. Esses são os que não conseguem admirar uma paisagem bonita, são os que não se emocionam ao ver um macaquinho no zôológico pegando um pedacinho de fruta e dividindo com o seu companheiro de jaula. Esses são os que não param para ouvir o barulho da chuva ou para ajudar uma senhorinha que caminha mais devagar que uma lesma com enxaqueca a atravessar a avenida movimentada. Não gosto de gente assim, na verdade eu desprezo pessoas desse nível. Elas estão ocupadas demais tentando ser ão. Ter ão. Manter o ão. Buscar mais ão. E não sabem o que é simplicidade.
Vivo me policiando porque quero tudo sempre e é bem difícil lidar com essa compulsão por sentimentos, já que o sentir em excesso atrapalha, pois se torna complicado a busca pelo equilíbrio. Vivo tudo o tempo inteiro com intensidades absurdas e em doses muito grandes e é quase impossível ser estável, deve ser por isso que sou tão inquieta. Acho que muito mais do que coisas e pessoas e trabalhos e casas de revista nós deveríamos fazer esforços diários para aprendermos a andar de bicicleta. Não aquela que todo mundo conhece. Falo da bicicleta interna, emocional, invisível e silenciosa que todos nós temos. Pena que nem sempre temos capacidade e paciência para procurá-la.