Do que você sente saudade? Perguntaram isso esses dias e a minha primeira reação foi fazer cara de planta sem água. A saudade é tão distante, presente, incômoda e agradável que me confunde. Ela é tudo isso: uma grande palheta cheia de cores. Você pode misturar e ver no que dá ou simplesmente deixar cada uma no seu montinho. Voltei pra casa lembrando de quando eu era criança.
A vó Lalá é minha madrinha e a casa dela era comprida e sem fim e tinha um tapete verde enorme e um abacateiro no quintal. Sempre detestei abacate, mas adorava a função: como eu era baixinha pegava um pedaço de pau e pleft, batia neles e tentava pegar no ar, colocava numa cesta e entregava pra vó. Depois ficava me gabando para o meu irmão e minhas primas que eu era grande. A vó Lalá é casada com o vô Paulo e os verões eu passava no Cassino, na casa deles. A casa era de esquina, eu e uma prima implicávamos com as netas do vizinho; amarrávamos os primos menores nas árvores para brincar de índio; jogávamos taco-bola; matávamos os sapos jogando sal em cima. Minha avó pedia pra eu comprar umas coisas no bar do seu Didi e ficava me cuidando da esquininha, pois o bar era na metade da quadra. E eu ia me sentindo muito adulta, pedia as coisas e dizia “seu Didi, a vó disse que pode dar o troco inteiro de bala, ta?” e ele fazia a conta no papel de pão e colocava as balas ali e enrolava daquele jeito que vira um pacotinho com duas pontinhas e eu voltava faceira. Não come bala antes do almoço, a vó dizia. É, podia dar dor de barriga. Minha avó é a melhor pessoa do mundo, ela está sempre sorrindo e tem um abraço tão terno que me enobrece. Não tem uma pessoa que não goste dela. E a casa é sempre cheia e barulhenta, ela teve oito filhos, nas nossas reuniões de família é uma folia danada: tios, primos, agregados, filhos dos primos, acompanhantes e etc.
Eu gostava de andar na bicicleta do vô. Ela tinha um tom verde-sem-cor e a clássica capa de banquinho do Flamengo com franjinhas amarelas. Meu avô é flamenguista doente, eu disse doente. Ele grita, berra, passa mal, xinga, envergonha a gente. Teve um dia que uns conhecidos estavam lá na casa do vô, gente super formal e ele estava no andar de cima vendo o jogo, eis que surge um grito: “filhos da p..”. Constrangedor.
A família da minha mãe é imensa, já a do meu pai é um pouco menor. A vó Leonor é a melhor cozinheira que existe e a pele dela é de boneca. Ela faz a gente ganhar muitas calorias. E tinha o vô Alvinho, mas ele morreu quando eu tinha dez anos. O vô era Prático, trabalhava em navio e então ele me contava muitas histórias sobre barcos, navios e o porto de Rio Grande. Eu ficava horas sentada no colo dele, na cadeira de balanço e ele sempre me defendia. Um primo vivia me mordendo no braço e saía sangue, me machucava mesmo. Mas eu não batia nele porque ficava com pena, ele era mais novo. E o vô saía correndo atrás do guri, a cena era engraçada: ele me mordia, abria a porta e corria pela calçada, o vô saía berrando atrás dele e a vó gritando atrás “Alvinho, deixa o moleque”. Vô Alvinho era meu protetor.
Essa noção de família eu tenho desde piá (pirralha, fedelha). Desde sempre o ano novo nós passamos com a família da minha mãe. Faça chuva ou faça sol. E o Natal é com a do meu pai. Sempre. Eu gosto disso, de estar perto, de festejar ao lado. Saí de Rio Grande quando eu tinha seis anos, mas temos laços fortes. Ligo, mando e-mail, visito. Meus avós, tios e primos são muito presentes na minha vida. Sempre que vamos pro Cassino a primeira coisa que eu faço quando estamos chegando é abrir a janela: nenhum lugar tem aquele cheiro. Nenhum canto do mundo inteiro tem o cheiro de eucalipto mais encantador e acolhedor e fascinante. É incrível, aquelas árvores cheias de folhas dançantes e o cheiro bom.
Sinto saudade é disso: de quando eu e minha prima brincávamos de “Xou da Xuxa” em cima da mesa da cozinha da casa da vó Lalá. Os microfones eram batedores de bife, aqueles de madeira, com cabo. O palco era a mesa. Sinto saudade dos teatrinhos que fazíamos. A platéia eram nossas tias. Sinto saudade do chá-cura-tudo que a vó me dava. Sinto saudade do tempo em que eu chegava de madrugada, sandália na mão e atirava pedra na janela do quarto da minha tia “anda, abre a porta antes que o vô acorde”. A vó acobertava eu e uma prima, pois ele não gostava que a gente saísse à noite.
Na verdade eu sinto falta do gosto da infância, de um pedaço meu que ficou pra trás. Sinto falta do perfume da vó, da voz do vô no rádio na hora do almoço (ele é radialista), do pastelão de camarão da vó Leonor, da cadeira de balanço do vô Alvinho. Das histórias, conversas, fotos, brigas, confusões de família. Daquela casa. Daquela esquina. Da areia do Cassino. Das lendas. Do Osvaldo. Osvaldo é um dos nossos personagens. Nós fazíamos jantares, tomávamos cerveja e ficávamos jogando algum jogo. Deitávamos nas redes e ficávamos lendo. E o Osvaldo apareceu por ali há uns seis anos e começou a fazer parte da família. Um gambá. Mas um dia ele sumiu e nunca mais tivemos notícias.
Um dia eu cresci e ainda bem que certas coisas não saem de dentro da gente. E que certos sentimentos nos acompanham. Do que eu sinto saudade? Do cheiro de eucalipto.
* escrito em 06 de novembro de 2007.