Só escreve quem tá pelado. Não pelado no sentido de sem roupa, sem nada-no-corpo-como-veio-ao-mundo. Falo da nudez da alma, que é uma coisa muito diferente. Tem gente que tem vergonha de tirar a roupa, por pudor, por não querer mostrar imperfeições, porque um vestido esconde aquela pinta feia bem no meio da nádega esquerda. Pra escrever é preciso se despir, tirar do corpo a tentativa de agradar, pois ninguém é um monumento. Você tem as suas cicatrizes, cravos, alergias corporais, marcas de espinha, celulites, estrias, gorduras localizadas, ossos localizados, o que gosta e o que não gosta no corpo. E todos os dias você se vê nu na frente do espelho (ou fecha os olhos pra não ver). Ninguém é perfeição, a não ser a capa da Playboy. Ainda assim, a perfeição tá estampada na capa - e só lá. Photoshop, maquiador, cabeleireiro, iluminação adequada, fotógrafo renomado. Tira tudo isso e elas são apenas mulheres comuns, não gostam muito da coxa direita, porque ela é maior que a esquerda. Pra escrever bem tem que ser comum, porque é no comum que tá a beleza-belezura-belezoca da coisa, e é isso que vale. O resto é nada, é fotografia bonita de um tempo bom. O que vale não é a foto, mas o momento em si, a foto é só o meio, o jeito de recordar o que a memória alzheimerenta deixa passar. Li um e-mail bonito hoje, a moça dizia que eu escrevia com o coração na ponta da caneta.
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Tenho pensado sobre o aprendizado. Aprendo muito, todos os dias. Algumas coisas nem sei direito, mas aprendi, só vou ver bem lá na frente, com o passar dos dias. Tenho tanto em mim, que nem sei. E um querer absurdo, apenas. Querer saber, querer tudo, querer dizer, compartilhar. De vez em quando nem sei tudo o que quero, tudo que espero. Apesar de aprender tanto, não sei organizar tudo isso ainda, talvez eu precise de uma secretária para organização de aprendizados diários. Uma coisa me preocupa: desaprendi muito. A culpa é o gostar de escrever. Sendo sincera, o amar escrever, porque escrevo da mesma forma que respiro. Me sinto sufocada, às vezes, pelas vontades, vontade imensa de dizer tudo o que preciso, mas não sei como. Escrever não é fácil. Todo dia aprendo algo novo sobre isso.
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De tanto que eu escrevo não sei se ainda sei falar. Ando com medo de gente, medo da interação, medo do ser humano. Eles são cegos, não conseguem ver o outro por dentro. Não tem nada mais importante do que conseguir enxergar o outro por dentro. Não tem nada mais gratificante do que conseguir enxergar a si mesmo por dentro. Se perceber. Perceber quem está do outro lado. Acho que desaprendi tudo isso, ando endurecida na fala, minha voz anda enferrujada, ao contrário dos meus dedos. Algum problema? Olha, te escrevo um e-mail sobre isso. Ei, te escrevi uma carta falando daquele assunto de ontem. Não consigo mais olhar no olho, ficar cara a cara e conversar. É tudo através das palavras, da caneta, de frases que se formam através do teclado. Pelo menos, segundo a moça, meu coração fica na ponta da caneta. Como o mundo é moderno, fica em cada tecla. Ainda bem.