Ano passado escrevi um texto. Algumas coisas o tempo trata de encolher, outras não (ainda bem). Um dia a gente descobre que perdeu o medo de falar o que sente. Calcular gestos, fazer muitos tipos, vestir fantasias, ajeitar máscaras e camuflar sentimentos se tornam inutilidades grandes, tipo bater um papo sobre o calorzinho que tem feito, no elevador com a vizinha do oitavo andar. Esse pacotão lotado de disfarces não é utilizado à toa, muito pelo contrário: é proteção, proteção de quem não se permite viver sentimentos baratos ou caros. Só que o amor é pago à vista. Sem desconto ou facilidades. Quer levar, leva. Se não quer ou não é um bom momento pode voltar outro dia. Mas entenda: você nunca achará um amor em promoção. E não tente dar balão no funcionário: não cola dizer que encontrou um amor mais em conta, não adianta usar artifícios para arranjar aquele descontinho. À vista, sem cheque pré-datado, sem tirar o cartão do bolso. É em cash mesmo. Nota em cima de nota: respeito em cima da honestidade, confiança em cima da sinceridade, amizade em cima da cumplicidade, lealdade em cima do afeto, admiração em cima das afinidades. E assim por diante. Muitas notas, iguais, desiguais, empilhadas.
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Dizem que o amor não tem preço, discordo. Você precisa abrir mão de alguns eus. O eu-egoísta, o eu-individualista, o eu-que-não-precisa-dar-explicações. Entenda que o preço, muitas vezes, é alto. Você não é mais sozinho, anda lado a lado com outra pessoa. Esse caminhar duplo implica muitos ganhos, é claro, e algumas perdas. Você precisa perder para poder ganhar cada vez mais. No começo é natural que você observe os lados antes de atravessar a rua. Depois, digo com conhecimento de causa, você atravessa correndo ou lentamente, tanto faz a velocidade, o fato é que você perde certos cuidados. Se for atropelado, azar. É o risco de viver. Um risco delicioso, diga-se de passagem. E o amor de verdade não vem de passagem, ele fica. Você faz sacrifícios porque quer. Não gosta de boxe, mas o outro gosta, então você assiste junto porque quer, sem obrigações, culpas ou deveres. Nelson Rodrigues dizia que todo amor implica uma servidão e que a tal servidão é voluntária, ela precisa ser voluntária. Então, depois de ficar grande, eu entendi. Quando eu pensava que amava achava (Reunião de Vavas) que o outro me devia algo. Me devia carinho, atenção, cuidado. De alguma forma eu cobrava, exigia e por isso, claro, não dava certo. Fiquei grande e descobri que aquilo tudo lá de trás, aquele filminho da minha vida era todo em preto e branco. Agora o filme tem cor, legenda, um belo cenário e um personagem principal. Tudo de graça. Sem cobranças, dívidas, mágoas ou frustrações. Porque quando vem de dentro a gente faz o possível para ver o outro feliz. Quando é de verdade a gente dá satisfação e a satisfação nem parece satisfação, pois não soa como tal. Soa leveza. Cheira a leveza. Tem sabor de leveza. Quando é real é leve. E o principal: não dói.
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Eu tinha medo do escuro quando era pequena. Um dia o meu pai me mostrou o que tinha no escuro, e não era nada. Não era bem medo do escuro, mas do que tava no escuro. Ele me mostrou que não era nada, muitas vezes. Tudo bem, com ele junto eu até acreditava, mas bastava ele ir embora pro medo voltar multiplicado por vinte e três. Eu não tinha medo do amor quando era pequena. Queria encontrar um príncipe encantado, daqueles de viver feliz pra sempre. Queria que o pra sempre chegasse logo, só pra ser feliz. Daí eu virei gente grande. O medo do escuro passou em partes, ainda durmo com a televisão ligada. Mas não tenho mais medo do que tá no escuro, tenho medo é da minha mente, que é bem inventadeira. Daí eu virei gente grande. E me veio um medo do amor. É tudo muito lindo na teoria, mas na prática, na vida real, no dia-a-dia, na convivência, no encontro bate um medo. Medo de tudo, até de ser feliz. Porque ser feliz assusta bastante, ainda mais pra mim, que adoro reclamar. Ser feliz é o que todo mundo almeja, mas quando chega lá, a gente pensa ei, e agora? O que eu faço com isso? Então você começa um processo de sabotagem. Arruma uma coisinha aqui e ali pra puxar a corda do defeito e estragar tudo. Tenta procurar alguma sujeirinha que ficou pelo caminho, afinal, nem a melhor limpeza do mundo deixa tudo brilhando por mais de trinta e cinco minutos. Você tenta e tenta e tenta e é vencida por uma coisa mais forte. Porque quando a coisa é forte e quando o príncipe encantado é daqueles de viver feliz pra sempre, não tem jeito, é a sina: você vive feliz pra sempre. E dá uma trégua para o espírito sabotadeiro. Chega, você resolve se permitir, afinal, o pra sempre tá aí, o que custa ser feliz?
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Quando eu dei aquele coração sabia que não ia me arrepender. O coração da Rosinha ficou muito tempo guardado, intacto, na mochilinha dela. Pensei em tirá-lo algumas vezes dali, por motivos óbvios. O problema é que os motivos mostraram, na prática, que não eram tão óbvios assim. E eu desisti. Mas aquele dia, quando a luz apagou, aquela noite, com algum atraso, naquele momento eu sabia que a minha vida, de alguma forma, ia mudar. E que eu não seria mais a mesma. E, ainda assim, seria ainda mais eu. Hoje eu tenho certeza que o coração foi tirado no momento certo. Entregue para a pessoa certa, coisa que até então eu não tinha lá tanta certeza se existia. "A pessoa certa, a pessoa certa", adoram falar isso. Hoje eu acredito. E concluo que o amor vale o preço que a gente paga, apesar de não ser um artigo encontrado em qualquer loja do ramo, seja ele qual for.