Fui ao cinema sexta-feira no meio da tarde e descobri que é ótimo fazer isso enquanto o mundo trabalha. Cheguei cedo, então esperei naquelas simpáticas poltroninhas vermelhas. Aquelas que nos trazem, mesmo sem querer, alguns pensamentos. A legítima poltroninha-de-cinema-divã. Algumas pessoas estavam ali, de certo pensando também. O pensamento, você sabe, é invisível - e silencioso.
Resolvi pegar o meu caderninho - coitado, quase lotado e sem espaço para excessivas ideias clarissais - e escrever sobre uma senhorinha. Quando escrevo viajo para outro mundo e falo outra língua. Lá na Clarissolândia a gente fala clarissês. Tem gente que não entende a minha língua, seja por preguiça ou por falta de inteligência. Não ouso julgar, isso é para Alá. Por isso eu escrevo. Escrevo pra tentar ordenar o meu caos. Pra colocar de forma mais bonita a vida. Ela é cheia de nós e fios, só tento desamarrar e amarrar pra você que me lê sempre ou só de vez em quando. E, confesso, tento fazer laços nos meus próprios cadarços. É que eles vivem desamarrando, fazem com que eu me embole nos próprios pés e caia. Isso acontece seguido.
A senhorinha vestia um casaco azul escuro, calça preta, manta bordô envelhecido, brincos discretos. Cabelo chanelzinho acinzentado, relógio com pulseira de couro gasta. Tinha mãos enrugadas, usava um blush suave, tinha uma mão nua e a outra possuía um anel fininho. Sapatos pretos, jornal na frente dos olhos pequenos, lábios finos, nariz com um calombinho levemente inclinado para baixo. Lembrei da minha avó. Vó Lalá, minha dinda. Mãe da minha mãe. A pessoa mais doce que eu conheço. Senti um aperto de saudade, minha avó mora no interior. Rio Grande, cidade em que nasci e morei até os 6 anos e meio de idade. A senhorinha comeu dois pães de queijo e tomou Guaraná de canudinho. Secou a coriza do nariz com um lenço de pano rosa claro. A Vó Lalá usa lenços assim. De novo, a saudade que não se segura em pé. Minha avó tem uma risada larga e um abraço bom. Está sempre sorrindo pra vida.
Senti carinho pela senhorinha, ali, sozinha com o jornal, as migalhas do pão de queijo no colo e as marcas da experiência no rosto. Elas denunciavam uma vida que, suponho, foi feliz. Uma vontade de chorar foi chegando, imaginei o passado bonito que ela teve. Quem faz isso, meu Deus? Quem imagina como foi a vida do outro e segura as lágrimas com um suspiro fundo? Me distraí, perdi de vista a senhorinha, estava compenetrada nos pensamentos e nas letras, meu caderninho lotado e eu brigando, eu implorando só mais um espacinho e ele não queria ceder. A senhorinha se foi, levantou e saiu de cena. Nem deu tempo de dizer que eu sei que a vida dela foi cheia de alegrias. As ruguinhas entregaram o jogo, pois sorriam para mim.
Pensei na minha avó. Mais uma vez ela, que aquece as minhas lembranças da infância. Pensar nela sempre me fez sorrir. E ela, como eu disse, sempre sorriu para a vida. Minha avó é tão especial, mas tão especial que Deus deve sorrir muito pra ela. Dia desses minha avó caiu no supermercado. Ela estava escolhendo frutas, escorregou, caiu e bateu com o rosto na caixa de bergamotas. Se machucou feio, foi pro hospital, levou pontos e fraturou um osso. O rosto está preto e o olho inchado. E ela continua passando batom e sorrindo. Quando perguntei como ela estava, ela me disse "estou ótima, minha filha, teu avô é que ficou sem bergamotas". Essa é a minha avó.