A bela adormecida

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Minha hora chegou. Sei que a gente precisa se confessar algum dia, e estou aqui então. Fico parada, falante, com o mundo na boca, batidas do coração na língua. Pedindo me escute, me escute, me escute. E delete, não lembre de nada disso amanhã, porque amanhã já vai ser outro dia e não quero remoer tudo outra vez. Delete, mas escute alguns momentos e se não for pedir muito, me abrace, um abraço cura tudo, abraços me fazem seguir adiante, mesmo que eu pareça vezenquando uma cega andando em labirintos.


Se eu fosse escrever a história da minha vida, a primeira pergunta seria: por que raios-diabos-cacete a gente entra em crise dos trinta? Isso vai acabar me matando. Uma vez, falaram que minha impulsividade iria me matar. Olha, tô viva, vivinha da Silva. Olha bem pra mim, não morri. Antes que você pergunte: os trinta só chegam no próximo ano. Sábado, dia três de outubro, farei vinte e nove. Eles andam pesando na minha cabeça, existência, ai, eles estão pesando. Na verdade, honestidade é tudo nessa vida, a culpa está difícil de ser carregada. Desculpe, o texto é primo da Janete Clair.


Culpa, culpa, culpa. De comer doce e carboidrato. De não ter cortado as pontas dos cabelos. De ter roído as unhas. De ter mentido, desculpa, eu menti. Eu menti quando disse que não tinha me importado, eu me importei, eu me importo, o mundo me dói muito às vezes e eu me pergunto hein, porra, isso acontece por quê? Já sei, algumas pessoas sentem demais, que saco, eu sempre escutei isso, você é sensível, tá bom, eu sei, mas eu queria ter um dia de insensibilidade, um dia inteiro de garota propaganda da Activia, só pra ficar com cara de alguém que tem cocô preso, mas o meu intestino funciona bem, obrigada, meu senhor. Queria um dia de garota propaganda do Bye Bye Celulite da Nivea, só pra ficar sem as malditas espalhadas do dedão do pé até as minhas orelhas. Ai, eu queria um dia de qualquer pessoa normal. Um dia. Mas não, eu tenho dias meus, que são intensos e não descansam e querem fazer tudo perfeitinho sempre e por isso não relaxo nunca e desse jeito vou ter um infarto do miocárdio antes dos trinta e dois. É, dos trinta e dois! Cada vez tem gente nova morrendo mais cedo e eu me pergunto será que vai ser assim, será que vou sem antes conhecer Paris e ter um cachorro e uma casa com vasinho de flor no meio da sala e um filho pra deixar pro mundo? Se bem que nem sei se quero, o mundo é tão estranho que dá medo. Ai, por favor, alguém me dá um tapa na cara agora? Não muito forte, sempre tive um medo danado de ficar com o rosto marcado. Bate de leve, mas bate, preciso acordar dessa bebedeira que anda a minha vida.


Por que ela reclama se tudo é tão bom? Ei, eu falei isso tantas vezes de tantas pessoas e tantas vidas, a gente sempre acha que aquela vida é melhor que a nossa, que é mais ajeitada, no lugar. Que nada, a gente se engana, vida é tudo igual, não sei porque tanto nhéin nhéin nhéin. É a culpa, é a culpa. Por que eu brinquei tanto tempo? Letras não enchem a pança, vou tatuar essa frase no meu braço, pra ficar lendo o dia todo. Brincar de escrever não é vitamina. E eu, que desde sempre só sei viver assim, nem sei mais o que fazer agora, meu deus. Agora, que tô crescendo e vendo que tem um mundo tão grande lá fora, que eu não conhecia, a vida não é esse mar de rosas não, com gente perfumada, maquiada e amiguinha. Penso e penso, volto a fita, sei que não é saudável voltar a fita, mas eu faço coisas que não são saudáveis como beber, fumar e falar mal dos outros, porque eu falo dos outros, eu peco, desculpa, eu sou gente e de vez em quando sou gentinha. Penso e vejo meu deus, quantas chances eu atirei pelo ralo do banheiro. Viagem, trabalho, cursos, coisas, pessoas. Por quê? Onde a minha cabeça andava? Não sei responder isso agora, mas sei o quanto isso me custa hoje, na vida de adulto, no dia a dia.


Desde sempre tenho o Pollyana Style. O mundo é rosa pink e tudo se resolve, pois as pessoas são boas. Opa, neguinha, as pessoas são ruins, nem sempre tudo é resolvido e, pasme, o mundo tem cor de bosta de vez em quando. Fim de papo. Fim da linha. Eu, com vinte e nove anos, pense, não era pra estar aqui. Eu, nos sonhos cheio de Zero Cal, teria com quase trinta uma Paulo Coelho´s Life. É, você leu certo. Ando com uma vontade danada de pegar um prato, daqueles de porcelana indiana, e atirar com tudo na parede. Pleft, cacos espalhados pelo chão. Então eu lembro que não tenho uma mucama-dosa e repenso a ideia, afinal, não é nada legal fazer ceninha de prato e depois ficar de quatro apontando o bundão pro mundo e juntando caquinhos. De cacos, bastam os meus.


Olha, eu preciso ter a minha vida. Não a vida de cartão de crédito no shopping, papo vazio e sacola cheia. Preciso ter a minha vida de trabalhadora. É, isso me faz bem, descobri. Tarde, é verdade, mas minhas descobertas sempre acontecem de formas esquisitas, acostumei. Eu queria ser normal, ao menos uma vez. Se eu tivesse descoberto o que queria aos dezoito, eu teria me formado aos vinte e três, com vinte e seis já teria mestrado, aos vinte e nove ganharia rios de dinheiro e gastaria em potes de creme de quatrocentos reais, viagens pra Veneza, Londres, Madagascar, Toquio, Roma, Viena e teria, certo, um apartamento em New York, New York. Claro que ainda sobraria dinheiro, então eu iria ajudar todas as crianças que não têm lar, os velhinhos que não têm família e os cachorros que não têm ração nem colo. Por fim, eu poderia decorar a minha casa (sim, eu ia ter uma!) da forma como eu quisesse. E poderia ter todos os cachorros que eu quero. E filhos ou filho ou filha. Obviamente, a criança teria que ter olhos claros, se não tivesse eu colocaria lentes de contato na hora. Agora você está me achando uma fútil, sim, eu sou fútil, eu quero cremes de quatrocentos reais e uma televisão imensa. Tudo isso poderia acontecer se eu tivesse descoberto o que queria aos dezoito anos. Mas eu descobri, pasme, bem mais tarde.


Aos dezoito, eu ainda estava vagabundeando por aí. Depois, Turismo. Depois, Direito. Depois, Psicologia. Depois, Formação de Escritores e Agentes Literários. Depois, o diploma suado. E depois de tudo, o regresso. O retorno da Jedi, Publicidade e Propaganda. Não reclamo, vale a pena o esforço. Mas eu podia tanto ter me dado conta antes, quando eu estava dormindo naquele mundo rosa, ai, eu sei que quiseram me acordar, mas meu sono era pesado demais. A caneta, sempre na mão. Os dedos, sempre no teclado. Imaginação no papel. Emoção na tela. Sempre fui assim, mas palavras bonitas não mantém a gente em pé. Você acreditaria se eu dissesse que é isso que me mantém viva? Soa dramático, não? Desculpa, mas é verdade. Escrever me faz viver. Ainda que de vez em quando viver seja complicado como hoje.
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