Você disse tudo agora. Disse tudo, disse tudo, disse tudo. Ninguém entendia o que era o dizer tudo dela. Dizer tudo, ela falava, é não deixar faíscas se criarem no ar. Sem mal entendidos, sem pensamentos abafados. E como a gente vive em um mundo no qual as pessoas se confundem tanto? Dizendo tudo, ela teimava em insistir. E se dissermos tudo, pense bem, o tudo não se transformará em caos? Talvez, e era disso que ela tinha tanto medo.
Cresceu aprendendo a falar a verdade. Mentia pouco, só pra bonito. A mentira bonita é aquela que não fere, que não joga nenhum objeto cortante e pontiagudo na cara do outro, sem mais nem menos. Quando mentia, fazia figa, pedia desculpas silenciosas. Preciso dizer tudo, preciso dizer tudo. Foi guardando partes do todo, pedaços do tudo para um dia, quem sabe, revelar-se. É difícil mostrar o íntimo. A falta de máscara é para poucos - e valentes. Ela era valente, mas usava maquiagem e fantasia de Carnaval. E no Brasil, você sabe, a preparação para o Carnaval começa cedo. Isso quer dizer que durante muitos meses ela pensava na roupa e adereços. Diga tudo, inclusive adereços, que vem da caixa de retalhos da Vó Emília.
Ela pensava que ao dizer tudo salvaria o mundo. Seria franca, justa, honesta. Só minto mentiras bonitas, justificava-se sempre, para não causar eventuais lágrimas. Gostava de fazer o bem e essas coisas que para alguns são tolas, como ajudar um senhor cego a atravessar a rua ou preparar um sanduíche e levar para a criança sem nome e sem casa que ficava no sinal fazendo malabarismo com laranjas velhas e murchas em busca de um trocado no fim de um dia incrivelmente quente e com vento abafado. Ouvia pacientemente os mais velhos e com nem tanta paciência os mais sábios. Ela se achava importante com pequenas coisas, não com demonstrações de outros, mas com os próprios elogios que ela mesma pronunciava na frente do espelho. Parabéns, você fez o bem hoje. E sorria. Sorria para o espelho, que sorria gentilmente de volta, embevecido com tanta dedicação com o mundo e as pessoas.
Qualquer pessoa que cruzasse o seu caminho não saía sem um afago nos olhos. Ela caminhava de riso largo para o paralelepípedo. Os cachorros que passavam - e faziam seus cocôs pelas calçadas - e transeuntes apressados não saíam ilesos a tanta vida naquele olhar. O catador de lixo, o homem da carroça, a moça apressada, o rapaz avoado, a menina de cachos ruivos, a senhora de bengala. Ninguém escapava daquela vida ambulante, aquela que dizia tudo. Ela então percebeu que tanto dizer e tanto tudo vinham de tanto querer. Porque ela queria muito, queria dizer de todos os tons o que sentia, o que a cada dia crescia mais e mais lá dentro, como uma sementinha de flor que vai crescendo pouco a pouco, como um feto que vai se desenvolvendo até virar um bebê bonito e com bochechas rosadas.
Ela dizia tudo e se orgulhava. Até o dia em que se engasgou no próprio verbo. E morreu sem dar tempo de pronunciar nenhuma letra.