Ela resistia. O corpo ficava rígido, cheio de tensão. Se debatia de um lado para o outro, do outro para um lado, e assim sucessivamente. Não queria admitir, dar o braço a torcer, levantar a plaquinha, dizer ok-você-venceu, baixar a guarda, hastear a bandeira branca. Mas, de tanto se corroer e não aceitar a verdade que pulava feito Saci Pererê na sua frente, pegou as roupas da Barbie, colocou na mala da Barbie e enfiou tudo no porta-malas do carro da Barbie. E saiu cantando pneus, com um lindo pretinho básico amigo de todas as horas. Filhos da puta!, gritou no caminho. Logo em seguida, pegou o celular reluzentemente pink da Barbie, ligou para a Suzi e disse eles venceram.
São todos iguais!, esbravejava a dona Suzi louca e com uma ponta de inveja, que de branca nada tinha. No fundo, devia pensar que finalmente a Barbie se deu mal. Ela foi renegada por tantos anos, só as menos favorecidas a queriam. Toma, Barbie de araque! Deixando de lado a disputa de beleza que ultrapassava as prateleiras de lojas de brinquedos, Suzi e Barbie estavam unidas por uma causa justa. O Ken é igual ao João que é igual ao Matheus que é igual ao Júlio que é igual ao Vitor que é igual ao Vanderlei que é igual a todos os seres humanos tripés do mundo.
A Barbie queria um namorado lindo, bem penteado, com sorriso mais branco que a mistura de Close-Up White com alvejante. Carinhoso, educado e patati patatá. Plim, a Barbie teve o desejo atendido pela Fada Madrinha Realizadora de Desejos. E assim ia ser feliz para sempre, em sua casa rosa de dois andares, cheia de luxo e ambientes bem decorados até que. Ponto. Pausa. Um, dois, mil e quarenta e nove, sete mil e vinte e cinco. Desliga o contador. Até que as diferenças começaram a surgir.
Barbie, loira e pura e santa e virgem e cabeluda e cheia de belos vestidos não sabia nada sobre os homens. Beijou uma imitação barata do Ken aqui e outra nas férias, mas nada que despertasse um sentimento amoroso-romântico-cheio-de-florzinhas. Um dia, o Ken. Chegou lindo e bem penteado e sorriso white white white tão white que doía os olhos dela. A paixão caiu da escada e virou amor. Plim, plim, plim, Fada Madrinha em ação. Vida amorosa resolvida. Filhos, cachorros, viagens, um, dois, mil e quarenta e nove, sete mil e vinte e cinco. Desliga o contador. Até que. Diferenças bateram na porta.
Ela entendeu que homens são práticos, mulheres são cheias de birra. Eles quase não choram, elas deixam a torneira lacrimal sempre pingando. Eles são diretos, elas têm rodeios. Eles dizem o que precisa ser dito, elas deixam tudo para ser elaborado mentalmente. Eles não elaboram nada mentalmente, elas concluem que eles têm problema de entendimento. Simples assim. São diferentes mesmo, ela pensou. A começar pelo gosto de cores, ela gosta de rosa e ele só acha que rosa fica bem nela, nunca usaria uma camisa rosa porque é coisa de Bambi. Eles falam logo o que pensam, elas sempre procuram o melhor jeito. Eles não se dão conta, elas querem que eles se toquem. Como? Hã? Hein? Parece que eles nunca vão aprender.
O Ken e a Barbie eram um bonito casal, se davam bem, tinham afinidades. E diferenças, mas conviviam bem. Passaram a ter mais afinidade ainda depois da descoberta das diferenças. Não tem como lutar contra, tem é que ficar ao lado, pois precisa haver esse entendimento absoluto da regra básica no quesito relacionamento homens e mulheres: são diferentes. Barbie se contorcia, não queria aceitar. Até que. Diferenças começaram a capotar em cima dela. Foi metralhada por cascatas de diferenças. Respirou fundo e pensou eu amo ele, ele é homem, antes de ser ele-ele, é homem-homem, vou amá-lo apesar de. Porque ela sabia que os homens em geral eram seres um tanto estranhos, que se achavam práticos e no fundo complicavam tudo. Entendeu que desavenças acontecem e que amores bonitos só mesmo em Hollywood. Compreendeu que o amor pode ser bonito - e é - sem ser hollywoodiano. E começou a digerir, com uma cachaça forte e barata, que homens são diferentes. Repetia para si mesma di fe ren tes. Até que.
O moreno bem penteado Ken andava exausto. Ela, perspicaz e amorosa, percebeu. Sugeriu que ele tirasse férias. Ken gostou da ideia e começou a procurar lugares bacanas para descansar. Japão, Austrália, Estados Unidos, Cancun. Volta para o último lugar, por obséquio, algo estalou em sua mente altamente imaginativa. Cancun?!? Barbie ficou admirada. Cancun, drinks coloridos, projetos de Suzi de biquíni minúsculo, luau noturno, diurno, vespertino, guarda-chuvinhas nos copos, mar azul, verde, multicolorido, resorts fabulosos. "Há algo errado no paraíso", pensou Barbie, lembrando da música. Ficou quieta, jogou uma mecha loura para o lado e tentou forçar uma cara de feliz. Ken percebeu e perguntou se ela estava triste porque ele sairia de férias. Ela rapidamente respondeu que não, inclusive reforçou o que ela mesma tinha sugerido. Voltou para a cozinha, preparou o jantar de Ken e pensou Cancun. Tudo bem que ela estava falida e nem teria férias, ele tinha mais é que aproveitar. Mas aproveitar em Cancun?!? Piorou quando um casal amigo resolveu mostrar fotos. Fotos de comemoração, um ano de casamento. Lugar lindo, tudo lindo, até a mosca cancunzenta é linda. Nas fotos, nada de projetos de Suzi de biquíni minúsculo, luau noturno, diurno, vespertino. Ela riu dela mesma e pensou que boba, que boba. Até que. Disse para ele inverter a situação. E se fosse ela, de férias em Cancun, com drinks coloridinhos, luaus infinitos, mar azulão, homens musculosos de sunga branca rebolando num vai e vem? Certamente Ken não gostaria. Mas ele, como todo homem, se garante. E isso dá muita raiva no mulherio.
Então ela, pensando mais uma vez nas diferenças entre homens e mulheres, disse para ele ir. Aproveitar. Passear e se divertir, afinal vai tirar férias. Silêncio pairou no ar. E ela adivinhou o pensamento Keniano. Por que não diz logo?, pergunta o homem. Porque a gente espera que vocês se toquem, diz a mulher. Se toquem do quê?, perguntam surpresos. Nada, nada. Eles nunca entenderão. Se divirtam. Descansem. Passeiem. Tirem férias. Relaxem. Vão para a tonga da mironga da puta que pariu, se quiserem. Toda mulher quer o bem do homem que ama. Desde que não seja em Cancun. Mas isso ainda não fica claro, é preciso um motivo. Eles fazem cara de hã-não-entendi-o-ponto. O motivo, para nós, é simples: por mais que o lugar seja lindo, nenhuma mulher se divertiria o suficiente sem o homem que ama. Por isso, Cancun nem teria graça. Por isso, iríamos para outro lugar. Mesmo porque um lugar assim é legal ir com quem a gente ama. Veja bem aquele casal, foram comemorar um ano de casamento. E o querido Ken quer passar férias longe de sua amada em um lugar paradisíaco. Mulheres não compreendem esse tipo de atitude masculinamente bruta e cruel. Agora o homem pergunta: e se quem a gente ama não pode ir, então a gente não vai?!? Lá vem o querer: a gente pensa putz, como ele consegue se divertir sem mim? Prefere ir sem mim? Mas nada disso tem que ser falado, uma mulher sempre espera que o homem perceba. Como ela vai dizer ei, era para você sentir muito a minha falta? Certas coisas não se diz. Ela pensa que não vale a pena falar se ele não sente, não se dá conta. E isso talvez eles nunca entendam. É complexo demais.