Olha, eu estou escrevendo pra dizer que tenho aprendido tanto! Não é tão fácil como parecia, eu bem sei. Você também deve estar sabendo e se eu te conheço direito, deve estar coçando a cabeça com aquela cara meio tensa e meio irônica, louco pra dizer que me avisou, me falou, cantou a pedra, bem-que-eu-te-disse. Sobrancelha arqueada, maxilar em estado de alerta, tudo retraído, meio dolorido inclusive. Por que tanto? Pra quê? Se podia ter sido diferente? Ah, podia. Mas não foi, não foi e você me avisou que não seria. Eu, burra que só vendo, dei de ombros e pensei isso-não-vai-acontecer comigo. Por que a gente sempre acha que nunca vai acontecer? Invencíveis? Fortalezas? Posso transar sem tomar pílula porque só aquela prima que mora no interior que ficou grávida. Posso transar sem camisinha porque AIDS é só uma palavra estranha e que volta e meia anda na boca do povo. Posso sair com o cabelo molhado que não vou ficar com dor de garganta. Posso dirigir completamente embriagada porque sou imortal. Posso falar mal de todo mundo e fazer maldades porque meu santo é forte. Posso roubar e matar porque no Brasil bandido livra sempre a cara. Posso ter mil amantes porque todo mundo faz isso hoje em dia. Posso usar drogas pra me enturmar. Posso usar um diamante enorme no dedo que nenhum cara vai vir com um trêsoitão me assaltar, porque assalto é só manchete da Zero Hora. Posso fazer tudo o que eu quiser sem consequência alguma porque consequências só aparecem em depoimentos no fim da novela do Manoel Carlos.
Olha, você tinha total razão. Você tinha uma razão tão absurda sobre mim que nem eu queria ceder e enxergar. Lembro direito das suas palavras quando saiu. Filha da puta impulsiva, um dia isso vai te matar. Matar não matou, mas me deixou meio aleijada. Não sei se consigo me proteger o tempo todo, entende? É uma coisa meio louca essa coisa de ter que. Ter que se proteger. Você sabe que nunca gostei de ter que sorrir, ter que sair, ter que ir, ter que como obrigação. Ai, para com isso. Não olha assim pra mim. Tá, eu sei que você não está me olhando agora, mas é que parece. Cada vez que eu lembro daquela cena, da filha da puta impulsiva (que sou eu), eu lembro da sobrancelha, do maxilar, da tensão. Por que você sabia tanto sobre o que nem eu imaginava? Não sei blindar minha alma. Ela fica ali, livre, achando que nada vai acontecer com ela. Pensa que morte, estupro, assalto, são números, estatísticas. Minha alma é péssima em matemática e às vezes se embanana com o português. Na verdade, ela nada entende. É tão pura e puta que só sente. Minha alma trai o que minha boca mente. É mais ou menos assim, um jogo de poder, cabo de guerra, luta corporal. E cansa cansa cansa.
Olha, eu estou aqui pra pedir só um pouco, bem pouco de clareza. Era pra ser libertador, não era. Esse crescimento todo. Libertador, encantador, renovador, ecoador, tumor, humor, torpor, calor, horror, ecoador, provador, dor, amor. Um dia ainda faço uma poesia com essas palavras. Or, or. E termino ela com amor. Aí mando pra você, com letra bonita, letra treinada durante meses em caderno de caligrafia. Posso? Jura que vai ler? Por favor, leia. Em voz baixa, pra você, quieto, manso, terno. Depois, se qualquer lágrima escorrer, deixa. Ah, deixa, vai. Seja homem ao menos uma vez. Deixa a poesia entrar em cada poro e te inundar.
Olha, eu estou escrevendo pra pedir com gana, com fúria, com verdade, com vingança, com uma cara bonita de saudade: não me esqueça. Já passou, mas não esqueça. Já morreu, mas não esqueça de lembrar. Só pra provar que um dia a verdade cuspiu no meio da avenida. E andamos para lados opostos. Pra nunca mais voltar.