Foto: Rogério Felício
Bicicletas me lembram o que passou. Com seis anos, aprendi a tirar as rodas. E você sabe que a vida sem rodas tem cheiro de liberdade. Escrevi um texto sobre isso ano passado, você pode conferir de pertinho essa história bicicleteira assim que sair o meu livro (momento jabá). Voltando ao mundo em duas rodas: bicicletas lembram meus verões no Cassino.
Nasci em Rio Grande e mudei para Porto Alegre em julho de 1987. Todos os verões eu, meu irmão, uma mala e minha mesada iam para a casa do Vô Paulo e da Vó Lalá. Hoje, meu avô diria "Feinha mais bonitinha do vovô, tu escreveu primeiro casa do vô, ao invês de casa da vó". É que todo mundo sempre teve a mania de dizer casa-da-vó e não casa-do-vô. Ele fingia que ficava invocado com isso (mas sei que era só fingimento).
Nasci em Rio Grande e mudei para Porto Alegre em julho de 1987. Todos os verões eu, meu irmão, uma mala e minha mesada iam para a casa do Vô Paulo e da Vó Lalá. Hoje, meu avô diria "Feinha mais bonitinha do vovô, tu escreveu primeiro casa do vô, ao invês de casa da vó". É que todo mundo sempre teve a mania de dizer casa-da-vó e não casa-do-vô. Ele fingia que ficava invocado com isso (mas sei que era só fingimento).
A Vó Lalá pedia para eu comprar pão lá na Valda, depois do pontilhão. E eu ia louca de vergonha. Explico: usava a bicicleta do vô. E o raio da bicicleta tinha uma capa de banco do Flamengo. Era muito feio, com franjinhas amarelas. Uma coisa realmente brega. Mas eu ia e voltava com o saco de pão. Depois, um pouco mais esperta, aprendi que dava pra tirar a capa do banco, sair, voltar e recolocar sem o vô perceber nadinha. De vez em quando a gente enganava ele. O vô não gostava que a gente saísse à noite, então nós fazíamos um esquema silencioso com a vó – que era sempre nossa aliada. Pode acreditar: era meio coisa de filme. Uma vez, na volta da boate, joguei pedrinhas na janela para acordar a minha tia – que também fazia parte da Tribo dos Enganadores do Vô. Era divertido.
Na hora do almoço, ninguém podia falar um piu. Tínhamos que ouvir o programa dele no rádio – o vô tinha um programa no rádio, escrevia para o jornal, era "famoso" na cidade. Por isso, a gente tinha que se comportar, senão diriam "a neta do Paulo Corrêa dançou sem calcinha a dança da garrafa em cima da mesa, a neta do Paulo Corrêa saiu gritando bêbada pelo meio da rua". Lembro que ele dizia "onde quer que tu vá tem alguém te olhando". E tinha mesmo. Rio Grande é uma cidade pequena, o que tem de gente fofoqueira e sem nada pra fazer não tá no gibi, de tão absurdo. Por isso, todo cuidado é pouco, senão você fica na boca de Matilde.
Sair pra caminhar com o vô era sempre divertido. Uma caminhada de meia hora virava duas horas e meia. Ele ia parando, cumprimentando, batendo papo. Feito político. Aliás, sempre achei que o vô podia ser político. Ele era admirado por muita gente – e não tão bem visto por outros tantos. Mas uma vez, enquanto a gente conversava, ele me disse que é sempre bom ter alguém que não gosta da gente. Isso nos dá força. E dá mesmo.
No verão, a casa do vô tinha vários sapos e pererecas. Eu morria de medo, chamava as pererecas de "moranguinhos". Quando ele me pedia para ir até a garagem buscar uma cerveja, eu perguntava "vó, será que hoje tem moranguinho lá?". Se tivesse, eu voltava correndo – e de mãos vazias. O vô ria e dizia que era besteira. Ele me chamava de Sara. E sempre dizia "cadê a irmã do Daniel?", pra implicar – apesar de eu e todos os meus primos saberem que o Daniel, meu irmão, era o neto preferido dele. E ele gostava muito do clássico cadê-a-feinha-mais-bonitinha-do-vovô? Quando eu era pequena, ficava braba, achava que ele me chamava de feia. Depois, vi que não. Ele chamava assim todas as netas, pra implicar – ele adorava implicar.
Uma vez, nós brigamos – e foi sério. Não lembro direito o motivo, mas arrumei as coisas e fui pra casa de uma tia. Depois, quando a vó fez uma cirurgia aqui em Porto Alegre e fiquei cuidando dela no hospital, ele me pediu desculpa. E ficou todo agradecido. A vó Lalâ é minha madrinha. Meu padrinho era meu avô Alvinho, que faleceu quando eu tinha 9, 10 anos. A vó é, sem dúvida, a pessoa mais amorosa, pura e divertida que eu conheço. Nunca reclama da vida, tem uma força incrível – e um amor intenso pelo meu avô.
No começo de fevereiro, minha avó teve um AVC. Meu avô ficou muito nervoso e teve um infarto. Cada um foi para um hospital. A vó ficou uns dias na UTI e o vô fez alguns exames. Constataram que ele tinha um problema meio sério e tinha que fazer uma cirurgia. Os médicos foram categóricos: se ele não fizesse podia morrer e se fizesse podia morrer também. Visitei eles no hospital: meu avô estava bem, no quarto, aguardando chegar o dia da cirurgia (3 pontes de safena e uma mamária). Cada vez que perguntava pela vó uma lágrima saía. Ela, por sua vez, sem mexer todo o lado direito do corpo e sem falar, não tinha como perguntar por ele. Mesmo assim, explicaram pra ela que ele estava no hospital fazendo exames. Ele fez a cirurgia, ficou 9 dias internado na UTI, teve pneumonia e sexta-feira, aniversário da cidade de Rio Grande, ele faleceu. Enquanto isso, minha avó já está em casa, no apartamento que eles compraram há pouco tempo, pois a casa em que moravam tinha dois andares e estava difícil para os dois subirem e descerem escadas. Minha avó está fazendo fisioterapia e fono, tem uma ajudante para o dia e outra para a noite. Ainda não movimenta todo o lado direito e nem fala, mas está evoluindo superbem, devido à vontade de viver que ela tem. Ela ainda não sabe do meu avô, nem sei quando irão contar. No momento, ela precisa de toda a assistência do mundo. Uma de minhas tias vai mudar a vida e voltar a morar com ela.
No ano-novo, achei meu avô muito emocionado. Ele chorou bastante, fez uma homenagem pra mim, tava empolgado com meu livro. Minha avó estava cabisbaixa, o que achei estranho. Ela, sempre tão alegre, nunca tinha chorado num ano-novo. E me pergunto: será que as pessoas sentem o que está por vir? Será que quando a gente tem um grande amor sente que ele vai partir? Vô, deixo aqui a minha saudade. E o meu desejo que você encontre a luz e a paz. Vou sentir falta da tua risada e da tua voz inconfundível. Se der pra fazer alguma coisa aí de cima, te peço: faz a vó ser forte e se recuperar rápido. E, por favor, faz a tua perda dar mais vontade de viver pra ela. Porque eu imagino que a perda de um amor deva doer muito. E ela, mais do que ninguém, vai sentir demais a tua falta. Por isso, vô, manda energias boas pra ela. E fica em paz, pois os grandes amores sempre voltam a se encontrar – na hora certa.